Não era papo de doido: o golpe está no forno e Eduardo Cunha é o cozinheiro

Não era papo de doido: o golpe está no forno e Eduardo Cunha é o cozinheiro


Até pouco tempo atrás, a palavra impeachment era pronunciada apenas por dois tipos de eleitores: os lunáticos e os paranoicos.
Os primeiros confundiam eleições com ofertas do varejo, daquelas que você entra na loja para trocar o produto caso não sirva.
Os demais juravam ver fantasmas debaixo da cama. Bastava ouvir uma crítica pontual a um governo legitimamente eleito para retirar o tamaco, subir na mesa e distribuir bordoadas: “golpista”, “udenista”, “conspirador".

Passado um ano do início da campanha presidencial, hoje já não há freio para a pronúncia do impronunciável. Quando percebeu (se é que percebeu), Dilma Rousseff passou a lidar com a materialização do mesmo fantasma que, a essa altura de agosto de 1954, assombrava Getúlio Vargas, alvo de intensa campanha da imprensa, da oposição e de aliados vacilantes em um país dividido entre lacerdistas e governistas. O mar de lama martelado por Carlos Lacerda em sua Tribuna da Imprensapara colar em Getúlio a pecha de um governo corrupto e ineficiente virou tsunami com o atentado na rua Tonelero, que feriu Lacerda e matou seu segurança, o major Rubens Vaz, há exatos 61 anos, um 5 de agosto.
Desde então o sistema presidencialista brasileiro pode ser comparado a uma corrida de cavalo. Não basta saber para onde vai o equino; é preciso permanecer na sela. O risco de cair atormentou, nas ressacas de popularidade, Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva. Vitimou Fernando Collor, Jânio Quadros e João Goulart. Na ditadura, os generais, que subverteram a ordem para supostamente protege-la, também tiveram de lidar com o empuxo gravitacional produzido pelos adversários internos. Viver é perigoso, escreveu Guimarães Rosa, e o grau de periculosidade aumenta conforme a ambição pelo cargo.
Por aqui, embora o protagonismo político das Forças Armadas não tenha o mesmo peso das cisões de outros tempos, muitos dos elementos de antigas farsas-tragédias parecem se repetir. A começar pela turbulência econômica e pelos bordões vazios (e inacreditavelmente ainda eficientes) de quem quer ser Carlos Lacerda quando crescer. Os lacerdistas e getulistas de hoje não falam a mesma língua, a capacidade de gestão do governante eleito é colocada em dúvida, pelo noticiário, a todo instante, e o apelo à moralidade parece uma oportunidade rara para quem andou ressentido por ficar fora da festa. Mais que tudo, os efeitos do ranço, da irresponsabilidade e da polarização já descambam para a coerção e a violência fartamente noticiadas. Ninguém se feriu, mas não tem outro nome se não atentado o lançamento de uma bomba caseira contra a sede do Instituto Lula. Da mesma forma, a anunciada aposentadoria precoce da advogada Beatriz Catta Preta, que defendia os delatores do esquema, é simbólica das ameaças veladas que outros atores da investigação dizem também estar sofrendo.
“Se os militares e a UDN assumissem o poder, haveria uma onda de moralismo, que seria farisaica e duraria pouco, mas que, de imediato, precisaria de bodes expiatórios”, conclui o senador Vitor Freitas, personagem fictício inspirado em fatos reais de Rubem Fonseca em “Agosto”, quando começa a calcular as perdas e ganhos com a queda do governo Vargas, que até então apoiava – e com o qual enriquecera.
Por mais radical e didática que seja a Operação Lava Jato, é difícil acreditar que os postulantes que agora se dispõem a moralizar a vida pública façam algo mais que um farisaico jogo de cena.
Os caminhos que os levaram (e financiaram) até ali são os mesmos. A assimilação da confluência entre interesses públicos e privados, idem.
O cálculo se torna ainda mais complexo quando o principal detonador da crise é suspeito de receber propina para conter achaques – a acusação é atribuída por ele a um governo que acaba de ser atingido no peito pela prisão de um ex-dirigente de trajetória simbólica dentro do Partido dos Trabalhadores.
Só Deus e o deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ) sabem se o presidente da Câmara fala sério quando atribui ao Planalto uma suposta influência na operação que tem sangrado o próprio governo. Mas, enquanto reverbera sua suposição, começa a dar mostras do que estava disposto a fazer quando anunciou o rompimento com o Executivo.
Cunha, segundo a Folha de S.Paulo, já discute o impeachment (a tal palavra impronunciável) de Dilma Rousseff com a oposição e parte da base aliada. O pano de fundo, além da proximidade da Lava Jato do Planalto, são os julgamentos das chamadas pedaladas fiscais, com a aprovação da urgência da análise das contas de governos encerrados há 20 anos que estavam na fila, e do suposto abuso de poder econômico pelo Tribunal Superior Eleitoral. Enquanto isso, o Congresso segue estourando as pautas-bomba que ampliam os gastos da União e dos Estados num momento de recessão, baixa arrecadação e de discussão sobre cortes e ajustes para pagar as contas.
À medida que o governo perde força política e poder de barganha, a pronúncia da palavra impeachment deixa de ser um bode na sala. A estratégia do deputado, conforme a reportagem, é rejeitar, a princípio, os pedidos de impeachment, mas leva-la a votação após algum deputado recorrer da decisão. Assim, jogaria fumaça sobre uma alegada vingança pessoal contra o Planalto e jogaria aos demais deputados o constrangimento de negar em público um pedido com um (assim noticiado) forte apelo popular – a essa altura, conforme as manifestações de rua ganham musculatura com a ajuda de grupos organizados e com lado claro nesta história, negar o mar de lama, a essa altura repetido e transformado em imagem material, é como virar as costas para o próprio eleitor.
Pois uma coisa é distribuir afagos em público a quem surfa na popularidade. Outra é sair em defesa de quem, diariamente responsabilizada pela crise política e econômica (não exatamente nessa ordem), tem menos de 10% de aprovação.
Os demais 90%, obviamente, não clamam em uníssono pela saída da presidenta, mas parte dela parece disposta a sair às ruas para lembrar os erros e suspeitas sobre o governo sem dar um pio sobre a denúncia contra Eduardo Cunha, acusado de achacar empresários e de receber US$ 5 milhões em propina, e ainda assim apontado como salvador de todos os anseios de um país hoje estagnado e, desde sempre, desigual e dividido.
A conversa de lunáticos e paranoicos agora é crise institucional. O impeachment está no forno e Eduardo Cunha é o cozinheiro. Ou, de novo Guimarães Rosa, viramos todos personagens de Darandina, que, num surto de delírio ou consciência, do alto de uma palmeira anunciava o fim do mundo a uma plateia tão eufórica quanto desorientada: “O feio está ficando coisa… Nada de cavalo-de-pau! Querem comer-me ainda verde! Eu me vomito daqui! Cão que ladra não é mudo!” 

Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

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